quinta-feira, 10 de outubro de 2013

SEM TÍTULO II


CAPÍTULO 02: EMUNAH




Escrito por: Lincoln Berlick
Revisto e editado por: Victório Anthony


           Estava sem forças, fraquejava, mal conseguia abrir os olhos. Tudo o que pude ver naquele instante era Pedro indo para cima de Azazel num ataque furioso. O demônio simplesmente se desviou da espada dele, acertando-o com um soco na barriga que o jogou a metros de distância. Tico mal se sustentava em pé, reuniu o resto de suas forças e arriscou um diálogo com o demônio:

            — Não é possível! Como?! Eu invoquei o Salmo 91!

            — Realmente profeta, aquilo foi impressionante... — ele abriu um sorriso insanamente calmo no rosto. — Poucos conseguem invocar o Salmo 91. Para seu azar, você não tem fé suficiente para me selar — fechando a expressão, completou. — O tempo de vocês, humanos, acabou...

            Sua espada negra surgiu novamente em sua mão. Tudo se encerraria ali, eu não podia correr, Pedro estava esgotado, Tico gastara toda a sua energia no último golpe e aquele ser miserável sequer demonstrava estar cansado. Eu não queria morrer daquele jeito, eu nem sabia o que estava acontecendo! Olhei ao redor e vi a espada de Pedro no chão, próxima a mim, parecia apenas uma espada comum. Decidi segurá-la:

            “Se eu vou morrer, que seja lutando!

            Ao tocá-la, sem que Azazel percebesse, ela voltou a brilhar. Não com a intensidade de antes, mesmo assim, não pensei duas vezes, eu não tinha tempo para pensar! Lancei-me contra Azazel com tudo. Eu não tinha certeza se aquilo poderia dar certo, se eu conseguiria salvar a todos, busquei a resposta no fundo do meu coração e orei:

            “Senhor, livrai-me do mal, Senhor, entrego a ti a minha vida, Senhor, use a mim como sua ferramenta contra o mal.

            Eu nunca fui religioso, para dizer a verdade, já duvidei algumas vezes e, por algum motivo, naquele momento minhas preces foram ouvidas. A espada, antes fraca e sem vida, começou a pulsar e a brilhar cada vez mais forte, tomando conta do lugar, iluminando toda a rua. Tamanha era a intensidade que não consegui enxergar nada a um palmo de distância. Minha vista clareou aos poucos e não tardei a ver o corpo do demônio que estava carbonizado, liberando muita fumaça, completamente deformado e se desmanchando, como se parte dele estivesse ali e o restante saindo de outro mundo. Tico o agarrou fortemente com as mãos e nos ordenou:

            — Fujam agora, eu irei segurá-lo! Vá com o Pedro para o mais longe que puder! Encontrem o Padre Gabriel...

            Eu estava prestes a me recusar e Pedro me segurou pelo braço:

            — Me solte, precisamos ajudar o nosso professor! Ele vai morrer se ficar lá!

            Olhei para trás, Tico estava sorrindo de olhos fechados:

            — “Salva-me, ó Deus, pelo teu nome; defende-me pelo teu poder. Ouve a minha oração, ó Deus; escuta as minhas palavras. Estrangeiros me atacam; homens cruéis querem matar-me, homens que não se importam com Deus. Certamente Deus é o meu auxílio; é o Senhor que me sustém. Recaia o mal sobre os meus inimigos! Extermina-os por tua fidelidade! Eu te oferecerei um sacrifício voluntário; louvarei o teu nome, ó Senhor, porque tu és bom. Pois ele me livrou de todas as minhas angústias, e os meus olhos contemplaram a derrota dos meus inimigos.” (Salmo 54)

            Conforme as palavras de Tico, Pedro me arrastava a toda velocidade e, antes da figura dele sumir ao longe, seu corpo se iluminou por inteiro. Engraçado dizer, Azazel estava sem seu sorriso macabro, estava desesperado, lutando e se debatendo para se libertar. O tempo ficou devagar, as passadas mais lentas, um forte clarão acompanhado de uma explosão de grandes proporções subindo até o céu... Foi então que percebi o que meu professor de história estava dizendo:

            “Eu te oferecerei um sacrifício voluntário...

            Eu não conseguia aceitar essa possibilidade:

            “Tico... Tico se sacrificou mesmo?”

            Meus olhos ficaram úmidos, eu não queria acreditar, não poderia ser verdade. Eu implorei ao Pedro:

            — Me soltei, por favor, precisamos ajudá-lo!

            — Não podemos fazer nada — respondeu secamente. — É tarde demais...

            Não suportei aquela angústia, perdi as forças, os sentidos e a razão, apagando nos braços do Pedro.

...

            “Finalmente acabou, foi tudo um pesadelo, apenas mais um sonho maluco...”

            Abri os olhos, olhei ao redor, nada estava no lugar, aquele não era o meu quarto... Tratei de levantar e fui dominado por uma dor lancinante:

            “Aonde eu vim... Espere!

            Eu estava sentindo dores no braço.

            “Isso significa que... Tudo foi real?! Não é possível, tudo o que vi, tudo o que aconteceu... Não deveria ser real!

            Meu desespero foi interrompido pela porta se abrindo, era Pedro, eu estava em seu quarto:

            — Cara, você não acreditaria no sonho maluco que tive... — tentei esconder a apreensão que estava sentindo.

            Ele ficou quieto, se recostou na parede e desabafou:

            — Não foi um sonho Sebastian... — disse-me, sem me olhar nos olhos.

            Algo em sua voz estava diferente, ele estava sério e com uma expressão desanimada.

            — Não é possível, tudo o que aconteceu... É LOUCURA! — gritei a plenos pulmões.

            — Sei que é muita coisa para processar Sebastian, mas quero que entenda que tudo foi real. Lutamos, sim, contra um demônio! Ele era um dos treze generais do inferno, o poderoso senhor das armas, Azazel...

            “Esse nome, eu reconheço esse nome...

            Acabei me lembrando que algo ruim tinha acontecido. Meu peito ficou apertado, tomado pelo sentimento de culpa:

            — Demônios não existem! Não podem existir! Foi tudo um pesadelo! — era o que a lógica me dizia.

            — Quanto mais rápido você aceitar, melhor será...

            — Claro! Demônios existem, você é capaz de criar espadas do nada, e o nosso professor de história...

            “Nosso professor de história...

            — O que aconteceu com o Tico?

            Hesitante, Pedro respondeu:

            — Ele... Ele sacrificou a própria vida para nos salvar...

            “Ele está... morto?”

            Congelei, sentia-me gelar da cabeça aos pés, minha respiração falhava, a dor me consumia. Fiquei quieto, procurando entender que meus pesadelos tornaram-se reais.

            Pensei e revi tudo o que acontecera durante longos minutos, acabando por lembrar:

            — O que aquela coisa queria?

            Pedro foi direto:

            — Você...

            — Como assim? Eu?

            — Vamos tomar o café da manhã, você vai precisar de energia para digerir tudo o que tenho para lhe dizer...

            Com dificuldade, me levantei e o segui até a cozinha. A casa era bem simples, sem grandes decorações, contudo, não me pareceu haver mais ninguém ali. Sentei-me à mesa, não sem antes questionar Pedro sobre um detalhe delicado:

            — Ahn... Onde estão os seus pais?

            — Sou órfão, meus pais foram assassinados por demônios...

            Quieto, observei Pedro enquanto ele me servia um pouco de café e bolachas. Experimentei um pouco da refeição simples e reparei que os braços dele estavam inteiramente enfaixados por conta dos ferimentos da noite anterior. Quis terminar a refeição, mas não pude me conter por muito tempo:

            — Me diga... — parei um pouco, terminando de mastigar a bolacha. — Por que Azazel estava atrás de mim?

            Pedro demorou a dizer, deveria estar procurando as palavras certas. Respirando fundo para tomar confiança, ele procurou atender a minha vontade:

            — Temo que eu tenha escondido algumas coisas de você...

            — Algumas coisas?

            — Foi para o seu bem...

            Aquilo já estava me irritando:

            — Explique-se!

            — Bem, existe uma lei que rege o mundo: quando um homem morre, seus atos são pesados e de acordo com suas atitudes, ele pode ser enviado para o paraíso ou para o inferno. Os que são mandados para o inferno têm o direito à redenção, caso eles se arrependam verdadeiramente do mal que fizeram. Porém, os que continuam a nutrir raiva e ódio em seus corações tornam-se demônios. Nos tempos primordiais os demônios descobriram uma maneira de escapar do inferno, causando o caos sobre a Terra. Um demônio em particular se apoderou de uma mulher e criou diversas pragas e doenças, disseminando a maldade sobre o mundo. Mais tarde essa história ficaria conhecida na mitologia grega como a Caixa de Pandora.

            — Até conheço a história de Pandora, mas, um demônio espalhando os males sobre a Terra?

            — Sim. Reza a lenda que Deus, em resposta, mandou quarenta guerreiros para combater esses demônios. Eles ficaram conhecidos como os primeiros profetas, homens do senhor treinados pelos próprios arcanjos. Como eles eram mortais, decidiram deixar seu legado para as próximas gerações escrevendo as antigas escrituras, contendo diversas formas de combater os demônios. Entretanto, com o tempo, o material original foi se perdendo, sobrando o que você conhece hoje como a bíblia moderna — Pedro se animou. — Esses profetas eram verdadeiros combatentes! Um deles em especial se destacava dentre todos por ser extremamente poderoso ao desenvolver uma habilidade única. Ele era capaz de usar apenas palavras para punir e exorcizar os demônios. Antes de morrer ele ensinou esse dom aos seus discípulos, aconselhando seus irmãos a passar seu melhor dom ao próximo para que as futuras gerações pudessem continuar seu legado.  Assim surgiram as classes proféticas.

            — Continue...

            — Entre nós existem cinco classes: guerreiros, invocadores, exorcistas, elementais e oradores. Os guerreiros, alimentados pelo desejo de luta, são extremamente fortes e rápidos. Os invocadores podem materializar relíquias e armas sagradas, como eu fiz na luta contra Azazel. Os elementais usam somente os quatro elementos da natureza para lutar: água, terra, fogo e ar. Exorcistas são profetas raros, uma vez que conseguem liberar todo o potencial das palavras para lutar. Usam como arma os versículos da bíblia, quando lidos em voz alta, as palavras ganham seu significado efetivo. Eles são muito poderosos, inteligentes e perspicazes... Tico era um Exorcista.

            “Ele morreu para me proteger...

            Aquilo não parava de martelar dentro de mim:

            — Por que ele estava tão decidido a me proteger?

            — Ele acreditava que você era o nosso messias...

            — Messias, o salvador do mundo?

            Eu conseguia ver nos olhos de Pedro o quanto era difícil para ele me dizer aquilo:

            — Diz a lenda que, de tempos em tempos, Deus envia um homem, alguém com uma fé inabalável, para dominar os demônios.

            — Você só pode estar brincando, não é? Eu mal sei os doze... dez mandamentos! — eu ri de mim mesmo. — Sinto muito... Não sou quem ele achava que eu era.

            — Eu também não acreditava nisso... — ele me encarou seriamente. — Não até ontem à noite... O que você fez foi surpreendente, você atrasou Azazel! Até ontem tudo isso não passaria de uma simples fantasia pra você e em um momento difícil, você se apegou fortemente a Deus — Pedro sorriu com vontade. — Você pediu ajuda, meu amigo, e foi ouvido!

            Pedro estava certo, por mais que eu quisesse negar, eu não podia. Definitivamente não me lembrava de ter pedido algo a Deus em outra ocasião e ter sido tão prontamente atendido. Na verdade, como um descrente, eu me questionava se Deus realmente existia, se ele estava de fato lá. Apesar de tudo, aquilo ainda não significava que eu era o messias:

            — Pare com isso, eu jamais poderia ser o tal messias de vocês, não sou um guerreiro ou um elemental, nem um invocador, um exorcista, ou mesmo um... Aliás, você não me disse o que os oradores fazem!

            Pedro tomou um gole de café:

            — Eu não sei ao certo. A única coisa que sei é que eles têm o poder de se comunicar diretamente com Deus, em outras palavras, eles oram e são ouvidos.

            — Tudo bem, eu posso ser no máximo um orador... Mas, o fato de eu ter sido ouvido não implica que eu seja o messias... Pode?

            — Veja bem, originalmente havia apenas quatro classes entre os profetas. Eu não conheço muito sobre os oradores, por que nunca vi um. Até onde sei, o último orador visto na Terra foi também um messias. Você deve conhecê-lo, o mundo inteiro o chama de Jesus Cristo. Claro, seus companheiros eram doze profeee... tas...

            Aquilo entrou na minha cabeça de forma lenta. Perdi o controle sobre mim, meus sonhos em que enfrentava demônios e me escondia pedindo ajuda a Deus vieram à tona. Decidi ignorar o fato e não contar a Pedro, que dedicou vários minutos explicando todo aquele conceito de messias, principalmente buscando me convencer que eu era ele. Não que eu pudesse contradizê-lo, mas para mim aquilo não passava de mera coincidência. Preferi interrompê-lo e mudar de assunto:

            — Me diga uma coisa Pedro, qual a probabilidade de seu melhor amigo e um dos seus professores serem profetas?

            Ele sorriu abertamente:

            — Ah! Tico, era excepcional! Além de exorcista, ele também tinha o dom da profecia e certa vez ele conseguiu ver nitidamente um certo adolescente... — ele olhou para mim, da mesma forma que Tico me olhara em sua última aula. — ...sendo atacado por demônios. Ele não entendeu exatamente o porquê, todavia concluiu que não poderia ignorar o fato e decidiu que deveria protegê-lo. Nós o encontramos com uma certa facilidade...

            — Nós?

            — Sim, Tico era meu mestre...

            “Mas o quê?!

            Senti-me contrariado, nossa amizade não era verdadeira?

            — Quer dizer que você só se aproximou de mim por que seu “mestre” mandou?

            — A princípio, sim, esse era o objetivo.  Com o tempo nos tornamos amigos de verdade... Eu juro que não queria te esconder esse segredo! Precisávamos ter certeza se de fato você era o messias. Chegamos a pensar que talvez não fosse você, até Tico ter uma nova visão...

            Seu rosto mostrou uma expressão triste e eu sabia o porquê, Tico não era apenas seu professor, era mais que isso! Eles conviveram juntos e ele se entregara em sacrifício.

            — Que visão?

            — Bem, ele viu a própria morte... Ele teve uma visão em que você estava sendo atacado por um demônio, dele lutando contra Azazel, sem me contar o lugar e simplesmente aceitou isso. Disse-me que essa era a vontade de Deus, que era necessário e decidiu que não ia fazer nada para mudar seu destino. Eu não havia gostado nada da ideia, não consegui aceitá-la. Escolhi, por vontade própria, que eu mesmo iria encontrar Azazel primeiro, antes que ele te encontrasse. Isso foi depois de nos separarmos no começo das aulas...

            “Isso explica seu sumiço e também aquele discurso do Professor...

            Eu me vi numa situação complicada, não sabia o que dizer, nem como agir. Tico tinha consciência do que estava para acontecer e mesmo assim aceitou seu destino, sem nem ao menos estar seguro de que estava certo. A única coisa que pude dizer foi:

            — Sinto muito...

            — Tudo bem... — Pedro voltou a sorrir para não me deixar desanimado. — Não foi culpa sua, era a vontade dele. Enfim, enquanto procurava pela presença do demônio, senti uma vibração estranha próxima a escola e decidi segui-la, já pressentindo o pior. Corri até a origem e lá encontrei o que mais temia. Tico sabia que eu ia intervir, por isso não me contou que a luta seria ali. O pior de tudo seria saber que fui um fraco, incapaz de proteger quem eu admiro, que ele morreu por nada...

            — Ele deu a vida por mim, eu que deveria estar morto! E ele não morreu por nada, ele acabou com o demônio!

            — Ele derrotou o demônio, mas você lembra para onde vão os demônios? Para o inferno... Demônios não morrem, apenas voltam de onde vieram e isso não os impede de atemorizar as pessoas novamente.

            — Que dizer que os homens apenas morrem e os demônios continuam atormentando a humanidade? Perfeito! E por que Deus permitiria algo assim? É injusto...

            — Creio que sim, mas não temos nada a fazer, apenas enterrar nossos mortos — Pedro colocou a mão no meu ombro. — Sebastian, Tico não morreu a toa, ele morreu por que acreditava em você e a partir de hoje, eu também acreditarei em você.

            Aquela história me deixava nervoso, eu não poderia ser o messias! Pedro percebeu minha irritação e se afastou:

            — Vamos, temos que procurar o Padre Gabriel, ele saberá o que fazer...


...

NOTAS:

*EMUNAH, é a pronuncia do que está escrito na imagem que acompanha a história e pode significar 'fé', 'verdade' ou 'verdadeira fé' em hebraico.

EMUNAH também pode ser escrito desta forma (5 letras): אמונה 

A escrita hebraica se lê da direita pra esquerda, como o japonês, e, basicamente, não há vogais. A pronúncia correta se adquire conforme se convive com aqueles que falam a língua e, para que o entendimento não se perca, existem sinais próprios para indicar quais sons as letras possuem, um ensinamento a mais desnecessário a leitura da história no momento.

Como a tradução hebraico-português ainda é meio falha no google tradutor, por ainda não apresentar a pronúncia correta, utilizei o Dicionário Bíblico Strong - Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de James Strong; como referência.


Podem haver divergências na leitura e significado, peço cautela se esta pequena tradução for utilizada.


3 comentários:

  1. Ahahaaa menos um e Azazel no entanto continua existindo! Muhahahahaahahahaa! Estou ansioso pela continuação :D

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  2. Extraordinário! Faltam-me as palavras para descrever o que achei lendo o conto... É algo como ler as histórias mais belas das mitologias mundiais. Algo novo, mas que ao mesmo tempo identifico com parte de mim. A história prende a atenção por ser muito bem contada. Estou me deliciando com um alimento que me parece a ambrosia ou o néctar dos deuses gregos...
    Só não entendi bem o título dado ao capítulo. Emunah como a verdade contada ao Sebastian??
    E por falar em Sebastian (Bastian), o nome me fez lembrar do filme "A História Sem Fim". Recomendo para quem não assistiu ainda.
    Esperando continuação.

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